Estava a ler este post no blog d'A Pipoca Mais Doce e fiquei profundamente chateada com a ignorância de alguns comentários.
As pessoas precisam mesmo de deixar de falar daquilo que não sabem, e acima de tudo de deixar de usar estereótipos para dar opiniões sobre assuntos sérios.
Quando uma vítima de violência doméstica volta para o agressor ou desiste da queixa, necessita é de ainda mais apoio e compreensão.
Primeiro de tudo, acho importante dar-vos a definição de violência doméstica: “... qualquer acto, conduta ou omissão que sirva para infligir, reiteradamente e com intensidade, sofrimentos físicos, sexuais, mentais ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio) a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico privado (pessoas – crianças, jovens, mulheres adultas, homens adultos, ou idosos – a viver em alojamento comum) ou que, não habitando no mesmo agregado doméstico privado seja cônjuge ou companheiro marital, ou ex-cônjuge ou ex-companheiro marital...”
Segundo, vamos às ideias erradas:
- a vítima está a ser coagida pelo agressor (até pode estar, mas não é a maioria dos casos)
- deixar o assunto para ser resolvido pelo casal e não aceitar mais nenhuma intimação do tribunal para testemunhar (uh.. simplesmente não! violência doméstica é um crime público e como tal o nosso dever enquanto cidadãos é fazer queixa, testemunhar, etc. Ou seja, mesmo que o caso não seja convosco podem e devem fazer queixa, não é só a vítima que tem esse poder)
- estas pessoas não fazem nada para mudar a sua situação e não aceitam ajuda (50% de verdade vá, mas a ajuda de conhecidos é muitas vezes difícil de aceitar)
- a mulher que volta para um homem depois de este lhe partir a cara merece é levar mais por cima (pessoas com este tipo de pensamento precisam de fazer a actualização de sistema. Estamos em 2013, não em 1900)
- há mulheres que gostam de ser mal tratadas (do sado-masoquismo enquanto fetiche sexual à violência doméstica vai uma légua de distância)
- Só volta para o agressor quem está só, sem ajuda de ninguém, sem saida mais viável (às vezes são fornecidas alternativas bastante viáveis, e ainda assim...)
Eis a minha resposta ao tópico no blog d'a Pipoca:
Infelizmente essa é a situação mais comum. Os agressores são geralmente muito manipulativos e as vítimas muito frágeis. Ele faz crer que se arrependeu, que não volta a acontecer e blabla, e a vítima perdoa, porque foi a primeira vez e porque ELA fez não sei o quê que o irritou. Quanto mais longa tiver sido a relação pior, porque maior é a intimidade.
Tem que ver com o fenómeno de inclusão do outro no self. Quando falamos dos outros geralmente referimo-nos a eles em termos de traços psicológicos (ele fez y porque é burro), enquanto que quando falamos de nós explicamos os nossos comportamentos em termos situacionais (eu fiz y porque dormi mal nessa noite). Numa relação romântica passamos a descrever o outro como se ele fosse nós mesmos, ou seja, "ele bateu-me porque eu falei com o porteiro e eu não devia ter feito isso". Assim, a vítima passa a desculpabilizar o agressor com base em situações e culpa-se a ela mesma. E apesar de ter momentos de "luz" e tentar sair da relação, isso será tanto mais difícil quanto maior a frequência ou extensão temporal das agressões. Ou se salta fora após a primeira agressão e a pessoa é resiliente o suficiente para não voltar atrás, ou só quando houver uma ameaça à vida ou a outra pessoa próxima da vida (um filho, por exemplo) é que ela pode resolver sair da relação, e mesmo assim é raro que aconteça nestes últimos casos.
É um fenómeno psicológico difícil de explicar, e muito difícil de compreender e aceitar por alguém que nunca teve na situação, mas acho que é possível comparar com uma adição, uma toxicodependência. O agressor é a droga, que vulnerabiliza e fragiliza a vítima, e quanto maior o uso da droga, maior a dependência e incapacidade de se libertar.
Acrescento que, tal como uma outra pessoa referiu num comentário, muitas vezes estas vítimas já eram vítimas no namoro, e ainda assim casaram com o agressor. Também parece não ser compreensível, mas a verdade é que em diversas situações (esta incluida) o pensamento é que o casamento vai fazer com que a pessoa X mude. O casamento muitas vezes é visto como um pó mágico que faz os outros mudarem (menos agressivos, menos alcoólicos, mais presentes, menos traidores, etc).
Outros dados que vos posso fornecer é que o (ab)uso de álcool está ligado a este tipo de violência, que a violência é cíclica (padrão de agressão seguido de perdão, tendo as agressões tendência para se agravarem), as mulheres também podem ser agressoras (incidindo mais em violência psicológica), e que a APAV pode fornecer-vos mais informações e que às vítimas oferece apoio jurídico, psicológico e social.
Comentários inteligentes e racionais que encontrei:
- Porque, quem não passa pela situação, sendo ou não a vitima, vai sempre dizer "que burra, então é porque gosta" / "se fosse eu, nunca me apanharia de volta". Não sabemos o amanhã...
- A maior parte das mulheres que são vítimas de violência não tem auto-estima, acredita que de algum modo merece o que se passou. Acham muitas vezes que se forem melhores, que não voltará a acontecer, culpabilizam-se pelo agressor e caem sempre no conto do coitadinho, porque homem que bate em mulher também tem anos de experiência em manipular.
(Entretanto, resolvi que este blog vai mesmo ser um blog pessoal)